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Aspectos sociológicos da coisificação da pessoa no contexto da Reforma Trabalhista e Previdenciária
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Fernanda C. Campos e Macedo[1]
O conceito de pessoa, especialmente naquilo que tem relação com o começo e o fim da vida, sempre teve importante relevância no campo do direito.
Se, de fato, o direito é construído por pessoas e para as pessoas, a formação de um senso comum sobre quando começa a vida e quando ela termina tem importância não apenas no campo da metafísica, mas abstratamente no conceito filosófico do que é “vida” e o que é “viver e morrer com dignidade”.
O direito, nesse contexto, deve ser visto, como uma ferramenta feita pelo homem e para o homem e, desta forma, deve assegurar àquele o status jurídico compatível a sua existência humana. Tal primado advém da sua própria consideração de pessoa: ser digno de proteção e respeito.
Apesar deste reconhecimento de que o homem é pessoa de direitos, a história comprova que nem sempre foi assim. A escravidão foi a maior prova de que o homem nem sempre foi tratado como pessoa. Naquele período, de forma expressa e sem pudores, havia a legitimação da “coisificação do homem” (homem como coisa e não como pessoa) enquanto ser passível ser comercializado, explorado e destruído por outros homens.
Com o avanço do capitalismo exacerbado, minimização do Estado e programas de alienação de grandes massas, alguns projetos de Poder, infelizmente, retomam a ideia de que o homem pode ser tratado como “ coisa”, só que desta vez de uma maneira disfarçada. Eis aí as ideias propostas nas Reformas da Previdência e trabalhistas apresentadas pelos partidos que pretendem se consolidar e aparecer como salvadores do Brasil. São eles PSDB e PMDB (com apoio de outros partidos que vendem seus votos a preço de ouro).
A constatação do aumento da longevidade, por exemplo, está em plena discussão no Brasil no contexto de reformas trabalhistas e previdenciárias. Desapegados da interdisciplinaridade e das múltiplas faces que envolvem as relações socioculturais no país, os economistas trazem fórmulas prontas para uma matemática que não se comunica com as ciências sociais e humanas.
O número de idosos brasileiros (com 60 anos ou mais) aumentou bastante na última década e tal variação em muito se deve a cultura de melhores cuidados com a saúde física na terceira idade, bem como os avanços tecnológicos da medicina.
Ao contrário do que afirmam os “reformistas”, caso tivéssemos uma proteção social mais abrangente através da correta utilização de recursos (diminuição dos índices de corrupção) a longevidade verificada poderia ainda melhorar e tal reflexo, de certa forma, colaboraria para economia do país, já que os salários percebidos na” aposentadoria” são gastos no próprio mercado.
É cediço que boa parte dos idosos, no Brasil, acaba tendo que retornar ao mercado de trabalho para subsistir com dignidade e foi, justamente, a constatação desse fato que faz os governantes pensarem: “ já que eles conseguem trabalhar, por que estão aposentados”?
Se estamos em um “Estado de bem estar social” é evidente que a constatação de que idosos retornaram ao mercado de trabalho deveria cobrar medidas para que estes não retornassem ( talvez com a manutenção do poder de compra e com uma aposentadoria digna; ou com a redução da carga tributária para que os produtos de primeira ordem pudessem ser adquiridos por aqueles) , gerando vagas para os mais novos que pretendem ingressar no mercado.
O Cálculo atuarial que embasa os sistemas de seguro, a nosso sentir, deveria estar adstrito à média de “sinistros” e o valor de contribuição e tempo necessários para custear a proteção. Se alguém começou a trabalhar muito cedo, mas contribuiu em tempo e na quantia necessária para conquistar a aposentadoria, a idade mínima não deveria ser cobrada, já que os cálculos médios ostentam situações diversas em atenção ao primado da “ solidariedade” do sistema. Ad exemplum: uns contribuem durante toda a vida e não usufruem da aposentadoria e nem deixam pensão por que morrem e não têm dependentes; b) Uns contribuem durante toda a carência necessária para a aposentadoria e, após se aposentar, continuam trabalhando e contribuindo sem qualquer contraprestação (Impossibilidade de desaposentação).
Muitas questões relacionadas à Gestão e governança do sistema previdenciário poderiam gerar uma reforma justa, de modo que, por exemplo: a) beneficiários de auxílio-doença também contribuíssem para o sistema no período de afastamento; b) investimento em fiscalização das contribuições previdenciárias dos empregadores e segurados (milhões são sonegados anualmente); c) investimento na fiscalização de fraudes na concessão de benefícios; entre outros.
Uma auditoria completa na Previdência Social, certamente, daria uma série de soluções para a gestão do sistema sem que fossem necessários retrocessos sociais e, pelo contrário, poderia gerar superávit para a ampliação da proteção social.
A Reforma Trabalhista também soa como um atentado aos direitos Sociais duramente conquistados ao longo de décadas. Basta ler o preâmbulo da Carta Magna de 1988 que se entenderá que os direitos sociais conquistados não podem retroagir e, pelo contrário, devem ser ampliados:
“Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.” ( grifamos)
Na prática o projeto de lei da Reforma trabalhista, se implementado, provocará uma drástica redução de direitos e no desmantelamento do sistema de relações de trabalho em vigor desde o surgimento da Consolidação das Leis do Trabalho.
Na visão dos defensores da reforma, as mudanças são necessárias em função da evolução nas relações de trabalho ao longo do tempo. Ocorre que tais mudanças, a nosso sentir, reclamam maiores cuidados com a proteção do trabalhador e não ao contrário, já que no nosso histórico de colônia de exploração, nunca existiu, culturalmente, um “equilíbrio” nas relações entre empregador e empregado.
Como definir que o negociado pode prevalecer sobre o legislado se é notório tal desequilíbrio; e se existem altos índices de condenações na Justiça do Trabalho por abusos por parte de empregadores?
Num cenário ideal, seriam poucas as condenações na Justiça do Trabalho de empregadores, pois estes teriam consciência social e adimpliriam devidamente com os direitos dos trabalhadores. No entanto, os números na Justiça laboral refletem justamente o contrário o que reclama os “olhos atentos” do Estado-Juiz e não ao revés como quer o governo.
Ora, como será uma frágil vítima desse cenário o trabalhador desempregado, com filhos precisando de alimentação e dizer para ele: “ tenho um negócio para lhe propor. Você trabalha para mim sem os direitos que a lei te dava e eu te pago abaixo do razoável, mas te dou um emprego. Fique certo que nosso negócio, apesar de desigual, não pode ser contestado na justiça, já que o negociado prevalecerá sobre o legislado.”
O Projeto do Governo de Michel Temer (parceria PSDB/PMDB) institui um marco regulatório “altamente favorável aos interesses das empresas”, que são os grandes financiadores de campanha e corruptores de políticos (senão vejam-se os fatos denunciados na operação lava-jato) .
Os principais fundamentos da reforma são: extinção do princípio de proteção ao trabalhador perante o empregador; redução do poder de negociação e de contratação coletiva dos sindicatos; outorga para usurpação de direitos previstos em lei; ampliação da possibilidade de contratos atípicos e desiguais e de trabalho autônomo; restrição à atuação do Poder Judiciário e também do acesso dos trabalhadores à Justiça.
Enfim, todas as evoluções que alcançamos para maior proteção do ser humano estão indo de água abaixo e o “povo”, infelizmente, alienado, sorri com o “ pão e circo” oferecidos pelo governo em associação com a mídia ( pertencente ao grupo empresarial que financia tais projetos).
Nossa função, enquanto cidadãos que tiveram acesso ao conhecimento e a história é, incansavelmente, “informar” e multiplicar as informações verdadeiras para a população. Seremos chamados de “subversivos”, já que a “ ditadura” disfarçada de democracia está instalada, mas dormiremos tranquilos em nossos travesseiros.
E-mail da autora: professorafer.campos@gmail.com
[1] Advogada, Sócia Fundadora do Escritório Carvalho Campos & Macedo Sociedade de advogados; Presidente da Comissão de Direito Previdenciário da OAB- Juiz de Fora (2016/ abril 2017); Coordenadora Regional do IEPREV em Juiz de Fora MG; Membro da Comissão de Direito Previdenciário da OAB-MG; Membro da Comissão de Direito Sindical da OAB-MG; Vice Presidente da Comissão de Direito Social da OAB- Juiz de Fora ( 2016/2017) ; Presidente do IMEPREP- Instituto Multidisciplinar de Ensino Preparatório; Pós-graduada em Direito Público pela Universidade Federal de Juiz de Fora; Pós-graduada em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pelo Complexo Educacional Damásio de Jesus; Especialista em Direito Previdenciário pelo ; Pós Graduada em Regime Geral de Previdência pelo IEPREV; Professora Convidada da PUC-MG de Direito Previdenciário nos Cursos de Pós Graduação em Direito Público e Direito do Trabalho ( 2016) Palestrante e Conferencista.