Artigos

Conceito de “Evento Súbito” e “Origem Traumática” no Acidente de Qualquer Natureza para Fins de Aplicação do Tema 269 da TNU

Por: Alan da Costa Macedo, Doutorando em Direito do Trabalho e Seg. Social na USP; Mestre em Direito Público na UCP; Especialista em Direito Constitucional, Processual, Previdenciário e Penal.



RESUMO
O presente artigo analisa os conceitos: “evento súbito” e “origem traumática” utilizados na tese fixada pelo Tema 269 da Turma Nacional de Uniformização (TNU), que define o conceito de “acidente de qualquer natureza” para fins de auxílio-acidente previdenciário. A partir de revisão da literatura médica, confirma-se a precisão técnica das definições e identifica-se potencial ambiguidade interpretativa na aplicação conjunta dos termos, com implicações diretas para a segurança jurídica na concessão de benefícios previdenciários por incapacidade. O objetivo é, portanto, demonstrar a necessidade de uma interpretação teleológica e sistemática da tese, alinhada aos princípios do Direito Previdenciário. A metodologia utilizada foi a revisão bibliográfica de doutrina jurídica e médica, bem como a análise jurisprudencial. Conclui-se que a rigidez conceitual da tese pode criar barreiras de acesso ao benefício, clamando por uma hermenêutica que considere a concausalidade e a moderna noção de perturbação funcional, garantindo a efetividade da proteção social.
Palavras-chave: Evento súbito; Origem traumática; Tema 269 TNU; Auxílio-acidente; Direito Previdenciário.



1. INTRODUÇÃO



A Seguridade Social, em sua matriz constitucional (art. 194, CF/88), visa assegurar a cobertura dos eventos de doença, invalidez e outros que compõem o rol de riscos sociais. O auxílio-acidente, previsto no art. 86 da Lei nº 8.213/91, materializa essa proteção ao amparar o segurado que, após a consolidação de lesões decorrentes de acidente de qualquer natureza, apresenta sequelas que implicam redução de sua capacidade para o trabalho que habitualmente exercia. A exata delimitação do fato gerador deste benefício — o “acidente de qualquer natureza” — é, portanto, um ponto nevrálgico para a efetividade do sistema protetivo.
Nesse contexto, a Turma Nacional de Uniformização (TNU), buscando pacificar a matéria, fixou no Tema 269 a tese de que o conceito de acidente de qualquer natureza “consiste em evento súbito e de origem traumática, por exposição a agentes exógenos físicos, químicos ou biológicos que acarretem lesão corporal ou perturbação funcional que cause a redução da capacidade para o trabalho”. Tal definição, ao buscar objetividade e segurança jurídica, importa do léxico médico os qualificadores “súbito” e “traumático” para o universo jurídico-previdenciário.


A utilização conjunta dos termos “evento súbito” e “origem traumática” na tese uniformizadora suscita questionamentos técnico-jurídicos relevantes, especialmente quanto à possibilidade de interpretações divergentes pelos operadores do direito, com reflexos diretos na concessão de benefícios previdenciários.
Contudo, a aparente clareza da tese esconde uma complexa zona de penumbra hermenêutica. A utilização conjunta e necessária dos critérios de subitaneidade e traumaticidade pode, paradoxalmente, gerar o efeito oposto ao pretendido, fomentando a insegurança jurídica. O Direito, por sua natureza, opera com categorias e marcos temporais definidos; a Medicina, por sua vez, frequentemente lida com processos e etiologias multifatoriais. A tentativa de capturar a dinâmica de um agravo à saúde em uma “fotografia” jurídica de um evento discreto e datado pode levar a exclusões indevidas do manto protetivo previdenciário.


Como ensina Wladimir Novaes Martinez¹, um dos precursores do estudo da matéria, o acidente de qualquer natureza deve ser entendido em sua acepção mais ampla, como um acontecimento imprevisto e fortuito que causa dano à integridade do indivíduo. A questão que se impõe é: a definição da TNU, ao exigir a concomitância dos dois elementos, abarca adequadamente situações-limite, como as lesões por esforços repetitivos (LER/DORT) cuja manifestação clínica final pode ser súbita (uma ruptura tendínea, por exemplo), mas cuja origem é processual e microtraumática, ou o agravamento de uma doença degenerativa preexistente por um gatilho de esforço mínimo, que desafia a noção clássica de “trauma”?
Diante desse cenário de potencial conflito interpretativo, o presente estudo propõe-se a uma análise bifronte. Primeiramente, a partir de uma revisão da literatura médica e médico-legal, notadamente nos campos da Traumatologia, Medicina do Trabalho e Fisiopatologia, buscar-se-á dissecar os conceitos de “evento súbito” e “origem traumática”. Como se verá, embora tecnicamente precisos em seus respectivos contextos, a transposição acrítica para o campo do Direito Previdenciário pode ser problemática. Autores como Genival Veloso de França², em sua clássica obra “Medicina Legal”, definem trauma como a ação de uma energia externa sobre o corpo, o que parece alinhar-se à tese, mas a noção de “energia” e “ação” precisa ser cuidadosamente ponderada.


Em um segundo momento, o artigo se debruçará sobre as implicações jurídicas dessa conceituação, confrontando a tese do Tema 269 com os princípios norteadores do Direito Previdenciário, como o da proteção ao hipossuficiente (in dubio pro misero) e o da interpretação social da norma. O objetivo final é demonstrar que, embora louvável a busca por uniformização, a rigidez conceitual da tese pode criar barreiras de acesso ao benefício que não encontram respaldo na finalidade social da lei, clamando por uma interpretação teleológica e sistemática por parte dos magistrados e da própria Administração Pública, a fim de garantir que a proteção securitária alcance todos os infortúnios que efetivamente reduzem a capacidade laborativa do segurado de forma imprevista.

2. O CRITÉRIO DA SUBITANEIDADE: UMA ANÁLISE DO MARCO TEMPORAL DO INFORTÚNIO

A tese fixada no Tema 269 da TNU elege o “evento súbito” como o primeiro pilar para a caracterização do acidente de qualquer natureza. A análise deste termo, tanto em sua acepção leiga quanto técnica, revela a intenção do julgador de estabelecer um marco temporal claro e definido para o fato gerador do benefício previdenciário.



Do ponto de vista semântico, “súbito” remete àquilo que é imprevisto, repentino, que ocorre sem aviso prévio. Essa noção é corroborada por dicionários da língua portuguesa, que o definem como algo que “chega ou acontece de repente”³. Na seara médica, essa concepção temporal é traduzida pelo termo “agudo”. Conforme define o MedlinePlus, portal mantido pelo National Institutes of Health (NIH) dos EUA, “agudo” descreve um quadro de início súbito ou sintomas que pioram rapidamente, estabelecendo uma dicotomia fundamental com o “crônico”, que se refere a condições de longa duração⁴.


De forma análoga, a literatura médica especializada frequentemente utiliza a subitaneidade do início dos sintomas como critério diagnóstico para emergências. O “acidente vascular cerebral agudo” (acute stroke), por exemplo, é classicamente definido como uma emergência médica caracterizada pelo “início súbito de déficits neurológicos focais” (sudden onset of focal neurological deficits)⁵, reforçando a associação indissociável entre a agudeza do evento e sua manifestação temporal repentina.

2.1. A Complexidade Fisiopatológica por Trás da Manifestação Súbita

Se, para o Direito, o evento súbito representa uma “fotografia” — um momento preciso no tempo —, para a Medicina, essa fotografia é frequentemente o desfecho de um longo “filme” fisiopatológico. Aqui reside a primeira fonte de potencial ambiguidade interpretativa. Muitas condições que se manifestam de forma aguda e incapacitante são, na verdade, a “agudização de um quadro crônico”.


Considere-se o caso de uma ruptura do tendão de Aquiles em um trabalhador durante um esforço de levantar uma caixa. A ruptura é, inegavelmente, um evento súbito. O segurado consegue identificar o dia, a hora e o exato movimento que resultou na lesão. Contudo, exames de imagem e a análise histopatológica do tecido poderiam revelar um processo crônico e silencioso de tendinopatia degenerativa, com microlesões que se acumularam ao longo de anos, fragilizando o tendão até o ponto em que um esforço final, talvez nem mesmo excepcional, tenha atuado como “a gota d’água”. Nesse contexto, a doutrina médica ortopédica é clara ao distinguir a causa imediata (o esforço) da causa mediata (a condição degenerativa pré-existente)⁶.


Elas são, na verdade, o ponto culminante de um processo crônico e silencioso de degeneração conhecido como tendinose, que fragiliza a estrutura do tendão ao longo do tempo. Um estresse mecânico final, agindo sobre este substrato vulnerável, desencadeia a ruptura aguda. Surge, então, o questionamento crucial para a seara previdenciária: o evento súbito exigido pela TNU refere-se apenas à manifestação clínica final (a ruptura) ou deve-se considerar todo o processo causal subjacente?


Uma interpretação excessivamente restritiva, focada apenas no caráter repentino da manifestação, poderia excluir do amparo previdenciário inúmeras situações em que um fator externo agiu sobre uma condição prévia, desencadeando a incapacidade. Do ponto de vista jurídico, a exigência de um “evento único e determinado no tempo”, como defendido por parte da doutrina para caracterizar o acidente, visa justamente diferenciar o infortúnio da doença profissional ou da doença degenerativa pura. O desafio, no entanto, é aplicar esse critério sem desconsiderar a realidade biológica de que muitos “eventos únicos” são, na verdade, o clímax de processos cumulativos.
A subitaneidade, portanto, deve ser analisada sob a ótica da percepção do segurado e da manifestação da incapacidade, mas sem que isso represente um véu sobre a necessária investigação da concausalidade, tema que será mais bem explorado quando analisarmos o segundo critério: a “origem traumática”.

2.2. A Desconstrução Médica do Evento Súbito e suas Implicações Jurídicas

A conceituação de “evento súbito” pode ser desdobrada em características médicas essenciais que, embora claras em teoria, demandam uma interpretação cuidadosa quando transpostas para a análise de um caso concreto no âmbito previdenciário. A partir da sua identificação, podemos analisar as implicações de cada uma:

a) Início Repentino e Manifestação Rápida: Estes dois elementos, intimamente ligados, formam o cerne da temporalidade do evento. O início repentino refere-se ao momento em que o agravo à saúde se instala, a “ignição” da lesão. A manifestação rápida, por sua vez, descreve a evolução célere do quadro, desde a lesão inicial até a estabilização de suas consequências. Do ponto de vista médico, um infarto agudo do miocárdio ou uma fratura óssea são exemplos paradigmáticos. O ponto crucial para o Direito Previdenciário é que a subitaneidade deve ser aferida em relação à eclosão da incapacidade funcional, e não necessariamente à origem microscópica da patologia. Retomando o exemplo da ruptura tendínea, embora a tendinose seja crônica, a ruptura em si e a perda funcional dela decorrente são eventos de início repentino e manifestação rápida, o que se amolda perfeitamente a este critério.

b) Natureza Inesperada: Este critério introduz um elemento de subjetividade e imprevisibilidade que é central para a noção de “acidente”. A natureza inesperada deve ser compreendida sob a ótica do segurado, do “homem médio”. Mesmo que, do ponto de vista médico-científico, uma complicação fosse estatisticamente provável ou fisiopatologicamente previsível (como a ruptura de um tendão degenerado), para o indivíduo que vivencia o infortúnio, o evento é fortuito e imprevisto. A proteção previdenciária visa cobrir o risco social, o infortúnio que quebra a normalidade da vida e do trabalho. Exigir que o evento seja “inesperado” até mesmo para um especialista seria esvaziar o conceito, pois muitas condições de saúde possuem fatores de risco e mecanismos de lesão bem estabelecidos. A surpresa e a imprevisibilidade relevantes são as do segurado.



c) Impacto na Saúde com Repercussão Funcional: Todo acidente, por definição, gera um impacto na saúde, uma alteração do estado de normalidade fisiológica. Contudo, para fins de concessão do auxílio-acidente, este impacto deve ser qualificado. Não basta a ocorrência de uma lesão; é imperativo que, após a consolidação desta, remanesça uma sequela permanente que implique redução da capacidade para a atividade laboral habitual. Como bem leciona Fábio Zambitte Ibrahim, o benefício não indeniza a lesão em si, mas sim a “perda de ganho futura” decorrente da sequela⁷. Portanto, a análise jurídica do “impacto na saúde” transcende o diagnóstico médico da lesão aguda (o CID da doença) e foca na consequência funcional e laboral permanente (a Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde – CIF), que é o verdadeiro objeto da proteção do art. 86 da Lei de Benefícios.

Ao dissecar essas características, fica evidente que o critério de “evento súbito”, embora aparentemente simples, exige uma interpretação teleológica, alinhada à finalidade da norma previdenciária. O foco deve recair sobre a ocorrência de um infortúnio pontual, inesperado para o segurado, que resulta em uma perda funcional consolidada. Tendo analisado o pilar temporal, passaremos agora à análise do pilar causal: a “origem traumática”.

3. O CRITÉRIO DA TRAUMATICIDADE: A NATUREZA CAUSAL DO INFORTÚNIO

O segundo pilar da tese do Tema 269 exige que o evento súbito tenha uma “origem traumática”. Este critério busca qualificar a causa do infortúnio, distinguindo-o de patologias endógenas ou degenerativas que não guardam relação com um fator externo. A medicina legal, em sua essência, define trauma como o resultado da ação de uma energia externa sobre o organismo, capaz de produzir lesão⁸. Essa noção é corroborada pela literatura médica contemporânea, que define o trauma como “uma lesão tecidual que ocorre de forma mais ou menos súbita devido a violência ou acidente”⁹ ou, de forma mais ampla, como “uma lesão em tecido vivo causada por um agente extrínseco”¹⁰.
A aparente simplicidade desta definição, no entanto, desdobra-se em componentes que, quando analisados sob a ótica da perícia previdenciária, revelam significativa complexidade.



3.1. O Agente Externo: A Origem da Energia Lesiva

Um dos pontos mais sensíveis na interpretação do critério da “origem traumática” reside na conceituação do “agente externo”, especialmente em lesões causadas pelo próprio movimento do segurado, sem colisão ou contato com um objeto terceiro. Um movimento brusco de torção do joelho que leva à ruptura de um ligamento, por exemplo, poderia, sob uma análise superficial, ser questionado como carente de um “agente externo”, levando a um indeferimento indevido do benefício.


Contudo, essa visão ignora os princípios fundamentais da biomecânica e da fisiopatologia do trauma. A interpretação médico-legal correta não deve ser topográfica (onde está o agente?), mas sim físico-funcional (qual a natureza da energia que causou a lesão?). O corpo humano é um sistema complexo de alavancas (ossos) e motores (músculos) que geram força e energia cinética. Quando essa energia é aplicada de forma anômala ou excessiva sobre uma estrutura anatômica — como um ligamento ou tendão —, ela se comporta exatamente como uma força externa, excedendo o limite de resistência elástica do tecido e causando a lesão.


A Medicina Esportiva oferece o exemplo paradigmático das lesões de ligamento cruzado anterior (LCA) sem contato, que correspondem a cerca de 70% de todas as rupturas de LCA¹¹. Essas lesões ocorrem tipicamente em movimentos de desaceleração súbita, mudança de direção ou aterrissagem de um salto, nos quais o pé fica fixo ao solo (ponto de reação externa) e o fêmur roda internamente sobre a tíbia. A energia destrutiva não vem de um golpe, mas da combinação da contração muscular, do peso corporal e da força de reação do solo, que juntos geram um torque devastador sobre o ligamento. Para a estrutura ligamentar que se rompe, a origem dessa força é irrelevante; o que importa é sua magnitude e vetor, que são de natureza traumática.


Portanto, o “agente externo” exigido pela norma não deve ser interpretado como um “objeto externo”. O agente é a energia lesiva de ordem mecânica, conceito que a Medicina Legal há muito tempo utiliza. Genival Veloso de França classifica os agentes mecânicos como aqueles que atuam por “modificação da energia cinética”¹². A energia cinética gerada pelo próprio corpo do indivíduo e aplicada de forma deletéria sobre uma de suas partes se enquadra perfeitamente nessa definição.
Negar a natureza traumática a tais eventos seria um formalismo estéril, que desconsidera a realidade científica e cria uma distinção artificial e injusta. A finalidade do critério da “origem traumática” é excluir patologias puramente endógenas (de fundo metabólico, genético, infeccioso não-acidental, ou degenerativo sem um gatilho externo), e não excluir lesões agudas de mecanismo biomecânico claro. A torção, a hiperextensão e a contração muscular excêntrica e violenta são, para todos os efeitos, os agentes traumáticos que produzem o resultado lesivo, satisfazendo plenamente o requisito causal para a caracterização do acidente de qualquer natureza.

3.2. Causalidade Direta e o Papel Fundamental da Concausa

A exigência de uma origem traumática pressupõe uma relação de causalidade entre o agente externo e a lesão. Contudo, é aqui que reside uma das maiores fontes de litígio previdenciário. Frequentemente, o trauma atua sobre um terreno biológico já vulnerável por uma condição pré-existente (ex: artrose, osteoporose, a tendinose). Uma interpretação restritiva, e infelizmente comum na via administrativa, poderia negar o benefício ao argumento de que a “causa real” da incapacidade era a doença degenerativa, e não o trauma, tratando este último como um mero acontecimento trivial.


Essa visão, contudo, ignora o instituto jurídico da concausa, um conceito fundamental tanto no Direito Previdenciário quanto na Responsabilidade Civil. A teoria da causalidade adotada, em regra, pelo ordenamento jurídico pátrio é a da conditio sine qua non (teoria da equivalência das condições), temperada pela causalidade adequada. Segundo essa teoria, considera-se causa toda e qualquer condição que, se suprimida mentalmente, eliminaria a ocorrência do resultado. No contexto previdenciário, isso significa que, se a queda, o esforço ou o evento estressor não tivesse ocorrido, a incapacidade (naquela forma e naquele momento) não teria se manifestado.


A positivação mais clara desse entendimento está no art. 21, I, da Lei nº 8.213/91, que equipara ao acidente de trabalho o “acidente ligado ao trabalho que, embora não tenha sido a causa única, haja contribuído diretamente” para a redução da capacidade. Embora a norma se refira ao acidente de trabalho, sua ratio legis (a razão de ser da lei) é a proteção do segurado contra infortúnios que quebram sua capacidade laborativa, princípio plenamente aplicável, por analogia e isonomia, ao “acidente de qualquer natureza”. Negar a aplicação do conceito de concausa a este último seria criar uma diferenciação protetiva injustificável entre os segurados.


O Superior Tribunal de Justiça (STJ) chancela essa interpretação de forma categórica, aplicando o princípio da concausa para deferir o auxílio-acidente mesmo em casos de doenças degenerativas preexistentes. Em precedente emblemático, a Corte Superior confirmou o direito ao benefício para um segurado com artrose, reconhecendo que a atividade laboral, embora não sendo a causa única, atuou como concausa para a evolução da doença e a consequente redução da capacidade, situação que se equipara ao acidente de trabalho para fins de concessão do benefício.


Nesse sentido, é o precedente a seguir ementado:

PREVIDENCIÁRIO. AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. AUXÍLIO-ACIDENTE. ART. 86 DA LEI 8.213/1991. INCONTROVERSA A REDUÇÃO PERMANENTE DA CAPACIDADE LABORAL DO SEGURADO. IDENTIFICAÇÃO PELO JUÍZO SENTENCIANTE DE CONCAUSA ENTRE A ATIVIDADE LABORAL E A ENFERMIDADE ATESTADA NA PERÍCIA JUDICIAL. SITUAÇÃO EQUIPARADA À ACIDENTE DE TRABALHO NOS TERMOS DO INC. I DO ART. 21 DA LEI 8.213/1991. REQUISITOS PARA A CONCESSÃO DO BENEFÍCIO PREENCHIDOS. AGRAVO INTERNO DO INSS A QUE SE NEGA PROVIMENTO. 1. O auxílio-acidente é concedido, nos termos do art. 86 da Lei 8.213/1991, ao Segurado, quando, após a consolidação das lesões decorrentes de acidente de qualquer natureza, resultarem sequelas que impliquem redução da capacidade para o trabalho que habitualmente exercia. 2. Por sua vez, o art. 21, I da Lei 8.213/1991, considera como acidente de trabalho o acidente ligado ao trabalho que, embora não tenha sido a causa única, haja contribuído diretamente para a morte do Segurado, para redução ou perda da sua capacidade para o trabalho, ou produzido lesão que exija atenção médica para a sua recuperação 3. Na hipótese dos autos, o Juízo sentenciante expressamente consigna que, embora a moléstia que afete o Segurado tenha natureza degenerativa, há relação de concausa na hipótese, ao afirmar que a atividade exercida pelo Segurado (carregamento de mercadorias) contribuiu para a evolução da artrose (fls. 193). O Tribunal de origem, por sua, expressamente reconhece a emissão de Comunicação de Acidente de Trabalho – CAT (fls. 311). 4. Assim, reconhecida a diminuição da capacidade laboral do obreiro e a concausa entre a moléstia e a atividade laboral, o Segurado faz jus à concessão do auxílio-acidente, preenchendo os requisitos legais. 5. Ademais, ao contrário do que sustenta o agravante, a transcrição das conclusões firmadas pelas instâncias ordinárias acerca das provas não implica em reexame de provas. 6. Agravo Interno do INSS a que se nega provimento. (AINTARESP – AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL – 965138 2016.02.09383-0, NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, STJ – PRIMEIRA TURMA, DJE DATA:08/11/2019)


No mesmo sentido, é o trecho do precedente do TRF3:
(…) No concernente à incapacidade, o laudo médico pericial, realizada em 5/5/2019, atestou a incapacidade parcial e permanente do autor para o exercício de atividades laborativas. Esclareceu, o perito, que “O autor é portador de doença degenerativa da coluna lombar discopatia tendo apresentado quadro de lombalgia crônica. Fez tratamento conservador com medicamentos e fisioterapia com melhora parcial. A doença é degenerativa pela origem, mas foi desencadeada e agravada pelas atividades laborais. Há nexo por agravamento (concausa)” (sic) e que, em virtude desse diagnóstico, “Há incapacidade parcial e permanente para o trabalho que exija atividade repetitiva da coluna lombar em flexo/extensão e rotação, movimentação de pesos ou posturas inadequadas, ou mesmo por traumas diretos ou indiretos, exercia à época.” Por fim, registrou que o autor foi “readaptado internamente” e que inexiste, in casu, necessidade de assistência de terceiros para o exercício das suas atividades da vida diária (Id. 170579033). Em resposta ao pedido de esclarecimentos formulado, registrou que “O autor comprovou ser portador de doença degenerativa com alterações anatômicas aos exames de imagem a saber: espondilose vertebral com espondilopatia degenerativa em L1-L2 e L3-L4. Em L1-L2 protrusão discoosteofitária posterior mediana que comprime a face ventral do saco dural e desloca as raízes neurais descendentes de L2 no trajeto intracanal. Redução no diâmetro ântero posterior do canal vertebral nesse nível. Em L3-L4 abaulamento discal difuso que apresenta proximidade com a raiz neural emergente direita e associado a componente protruso mediano/paramediano esquerdo comprime a face ventral do saco duram em aparente contato com as raízes neurais descendentes de L4. Em L 4-L5 e L5-S1 pequeno abaulamento discal posterior, sem repercussões radiculares. Discreto edema dos ligamentos interespinhosos de L3-L4 a L5-S1 denotando sobrecarga/estiramento. Como se pode observar as alterações anatômicas são importantes, há contato com raízes neurais em dois locais L2 e L4. Tais situações geralmente correspondem clinicamente à radiculopatias. A sobrecarga/estiramento corre por conta de sobrecarga pelas atividades de risco ergonômico. Estas alterações são permanentes e tendem a evoluir com a idade e fatores ambientais no trabalho e na vida diária. Do ponto de vista clínico o autor apresentou quadro de lombociatalgia crônica com restrição de atividades. De fato, em relatório médico conta indica-se postura ortostática e movimentação de pesos acima de 5 kg. (desde que não de forma repetitiva). Estas restrições são permanentes e o autor não poderá mais voltar às atividades que exercia na época, havendo incapacidade parcial e permanente. Há quadro sequelar residual com contraturas musculares e limitação de movimentos, indicando a permanência de sintomas e restrições. Note-se que após alta do afastamento o autor foi readaptado internamente em outra função como Operador de Utilidades III no recinto da Forjaria. Há incapacidade parcial e permanente permite que exerça outras atividades compatíveis com seu estado clínico e, assim garanta sua subsistência. Não necessita de assistência de terceira pessoa. Não há incapacidade decorrente de outras lesões nos membros superiores ou inferiores.” (Id. 170579069) Desta forma, embora se trate de pessoa portadora de patologia parcialmente incapacitante, observa-se que as limitações apontadas pelo perito motivaram, como bem registrado na sentença, “a concessão do benefício de auxílio-acidente n.º 549.905.467-0, com DIB em 22 de maio de 2007, por conta de sua discopatia degenerativa, tendo o perito da Autarquia Previdenciária constatado a incapacidade parcial e permanente”, não havendo qualquer outra limitação médica que justifique a concessão do benefício de aposentadoria por invalidez, nos termos da fundamentação, supra. Posto isso, nego provimento ao recurso.) APELAÇÃO CÍVEL .. SIGLA_CLASSE: ApCiv 5141720-83.2021.4.03.9999 ..PROCESSO_ANTIGO: ..PROCESSO_ANTIGO_FORMATADO:, Desembargador Federal THEREZINHA ASTOLPHI CAZERTA, TRF3 – 8ª Turma, grifou-se)


Este também é o posicionamento, na seara trabalhista, do TST:
AGRAVO DE INSTRUMENTO EM RECURSO DE REVISTA NÃO REGIDO PELA LEI 13.015/2014. DOENÇA DEGENERATIVA AGRAVADA PELO TRABALHO. CONCAUSA. RESPONSABILIDADE CIVIL. A jurisprudência assente desta Corte entende configurado o nexo causal quando a atividade laboral contribui para o agravamento de doença degenerativa na qualidade de concausa, permitindo a responsabilização do empregador. Precedentes. Registrado pelo Tribunal Regional que a doença degenerativa da Reclamante foi agravada pelas condições de trabalho, restando evidenciada a culpa da Reclamada, a decisão recorrida, em que deferida indenização por danos morais e materiais, está em consonância com a atual, iterativa e notória jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho. Agravo de instrumento não provido. (TST – AIRR: 833000820085050132, Relator.: Douglas Alencar Rodrigues, Data de Julgamento: 24/05/2017, 7ª Turma, Data de Publicação: DEJT 26/05/2017, grifou-se)


Para ilustrar a aplicação prática do instituto, considere-se os seguintes exemplos:

O Agravamento de uma Artrose: Um segurado de 55 anos, com um processo de artrose moderada no joelho (condição crônica e degenerativa), escorrega em piso molhado e sofre uma queda (evento súbito e traumático). A queda não causa fratura, mas desencadeia um processo inflamatório agudo severo, com derrame articular e lesão meniscal, que acelera a degradação da articulação e o leva a uma sequela permanente de claudicação e dor, reduzindo sua capacidade de deambular. A causa da sequela não é apenas a artrose, nem apenas a queda. É a interação sinérgica e deletéria entre as duas. A queda foi a concausa que transformou uma condição controlada em uma incapacidade consolidada.



A Ruptura Patológica Desencadeada por Esforço: Uma segurada com osteoporose (doença metabólica que fragiliza os ossos) tenta levantar seu neto do berço (evento súbito, esforço mecânico). Durante o movimento, sente uma dor lancinante nas costas e exames posteriores revelam uma fratura por compressão de uma vértebra. A energia do esforço seria insuficiente para fraturar uma vértebra saudável, mas foi o “estopim” para a fratura no osso patológico. O esforço, embora trivial para outros, atuou como o agente traumático desencadeador do resultado.



Como ensina Sérgio Pinto Martins, “a concausa é outra causa que, juntando-se à principal, concorre para o resultado. (…) Mesmo a preexistência de doença degenerativa não afasta o nexo causal, se a atividade funcionar como concausa para a redução da capacidade de trabalho”¹³. Logo, a análise pericial e jurídica da “origem traumática” não deve buscar uma causa “pura” em um organismo “perfeito” – uma ficção biológica. Deve, isto sim, investigar se o evento externo, súbito, atuou como um ponto de inflexão causal, um gatilho que, ao se somar a uma condição preexistente, resultou na perda ou redução da capacidade laborativa que se busca proteger.


3.3. O Dano: Da Lesão Tecidual à Perturbação Funcional

A definição médica clássica de trauma foca no dano tecidual, na lesão física objetivamente verificável por exames de imagem ou inspeção direta. Contudo, a tese da TNU, em acerto técnico e alinhamento com a moderna concepção de saúde, menciona “lesão corporal ou perturbação funcional”. Essa disjuntiva é de extrema importância e representa um avanço conceitual, pois alarga a proteção para além do dano estritamente anatômico, abraçando as sequelas que afetam o funcionamento do indivíduo, mesmo na ausência de uma lesão estrutural visível.


Isso abre portas para o reconhecimento de traumas psíquicos. Um evento súbito e violento — como um assalto, um sequestro-relâmpago ou um grave acidente de trânsito — pode não causar lesão física aparente, mas atuar como um agente etiológico para um Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT). O TEPT é uma “perturbação funcional” grave, com base neurobiológica bem estabelecida, que pode reduzir drasticamente a capacidade de um indivíduo para o trabalho e para a vida social, conforme os próprios critérios do DSM-5¹⁴. Nesse caso, o evento estressor é o “agente exógeno”, e o transtorno mental, a “perturbação funcional” de origem traumática.


A análise, portanto, não pode se limitar à busca por fraturas ou lacerações. A noção de perturbação funcional, no entanto, é ainda mais ampla. Pensemos no trauma cranioencefálico (TCE) leve, popularmente conhecido como concussão. Muitas vezes, um segurado sofre uma queda ou um impacto na cabeça, e os exames de imagem iniciais (tomografia, ressonância) não mostram sangramentos ou fraturas. Contudo, o indivíduo evolui com uma síndrome pós-concussional, caracterizada por sequelas neurológicas funcionais devastadoras: cefaleia crônica, tontura, fotofobia, irritabilidade, e, principalmente, déficits cognitivos (“névoa cerebral”), com prejuízo da memória, da atenção e da capacidade de planejamento. Trata-se de uma perturbação funcional com nítida origem traumática, mesmo sem uma “lesão corporal” macroscópica. A medicina neurológica reconhece que o dano, nesses casos, é microscópico, em nível axonal difuso, mas o impacto funcional é imenso¹⁵.

Outros exemplos incluem as lesões sensoriais. Um indivíduo exposto a uma explosão súbita (agente físico, onda de choque) pode sofrer um trauma acústico, resultando em perda auditiva neurossensorial permanente e zumbido incapacitante. A lesão ocorre nas delicadas células ciliadas do ouvido interno, uma perturbação funcional grave com origem traumática evidente. Da mesma forma, um trauma facial pode levar à anosmia (perda do olfato) por lesão dos nervos olfatórios, uma sequela que, para certas profissões (cozinheiro, enólogo, bombeiro), pode significar uma drástica redução da capacidade laboral.
O desafio jurídico, portanto, é fazer com que a avaliação pericial e a decisão judicial transcendam o paradigma puramente anatômico e adotem uma visão funcional da saúde, em linha com a Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF) da OMS. A jurisprudência, ainda que timidamente, começa a reconhecer essa realidade. Os tribunais têm concedido o auxílio-acidente em casos onde a sequela não é uma limitação física clássica, mas sim uma perturbação funcional de ordem psíquica, desde que comprovado o nexo com um acidente e a redução da capacidade laboral.


Nesse sentido:
APELAÇÃO. PREVIDENCIÁRIO. AÇÃO ACIDENTÁRIA. TRABALHADORA DE INSTITUIÇÃO FINANCEIRA. ASSALTOS. TRANSTORNO DE ADAPTAÇÃO E ESTRESSE PÓS-TRAUMÁTICO. DOENÇA OCUPACIONAL EQUIPARADA A ACIDENTE DO TRABALHO. AUXÍLIO ACIDENTE. CONCESSÃO. ATUALIZAÇÃO MONETÁRIA E JUROS DE MORA. Ação ajuizada por funcionária de instituição financeira, a qual pretende o reconhecimento de doença ocupacional e a concessão de auxílio doença, e caso verificada a sua incapacidade laborativa, o pagamento de aposentadoria por invalidez acidentária. Sentença que reconhece o direito de a autora perceber o benefício de auxílio acidente. Irresignação de ambas as partes. Flexibilização do pedido inicial formulado nas ações previdenciárias, considerada a sua relevância social. Possibilidade de concessão de benefício diverso do requerido na peça inicial, desde que comprovados os requisitos legais correspondentes. Este é o entendimento jurisprudencial do e. Superior Tribunal de Justiça, observado por este TJRJ. Acidente de trabalho, que pode ensejar a concessão de auxílio doença e auxílio acidente. O primeiro tem natureza remuneratória, e o segundo, natureza indenizatória. Doenças profissional e do trabalho, que são consideradas acidente de trabalho, na forma do artigo 20 Lei nº 8.213, de 1991. Conjunto probatório, que corrobora a tese inicial no sentido de que a obreira foi exposta a atos violentos em seu ambiente de trabalho, além do nexo de causalidade entre estes atos e a enfermidade psíquica de que é portadora, transtorno de adaptação e estresse pós-traumático, tratando-se, pois, de doença ocupacional. Existência de laudo emitido por perito do INSS e outros firmados por médicos particulares, psiquiatras e psicólogos, com textual referência a assaltos ocorridos no local de trabalho e àquela enfermidade. Laudo administrativo da autarquia previdenciária, que ainda considerou a segurada inapta ao exercício de suas atividades habituais e legitimou a concessão de auxílio doença acidentário em período anterior ao ajuizamento da ação. Autora, que foi submetida, administrativamente, a programa de reabilitação fornecido pela autarquia ré, sendo a final reabilitada para exercer outro tipo de atividade, a administrativa sem contato com o público e sem esforço manual. Este fato também demonstra a consolidação dos sintomas da doença ocupacional, de forma a não permitir o regular desempenho das atividades habituais então desenvolvidas pela obreira. Presença dos requisitos do auxílio acidente. Sentença, que merece pequeno reparo no que respeita à atualização monetária e aos juros legais de mora. Aplicação do artigo 1º-F, da Lei nº 9.494, de 1994, com redação alterada pela Lei nº 11.960, de 2009, legislação específica, que regula as condenações imposta à Fazenda Pública. Desprovimento da apelação interposta pela demandante e parcial provimento do recurso apresentado pela ré. (TJ-RJ – APELACAO / REMESSA NECESSARIA: 00809281820098190001 201729501741, Relator.: Des(a). DENISE LEVY TREDLER, Data de Julgamento: 15/08/2017, SEXTA CAMARA DE DIREITO PUBLICO (ANTIGA 21ª CÂMARA CÍVEL), Data de Publicação: 21/08/2017, grifou-se)


E, ainda:
Ementa: APELAÇÃO. DIREITO PREVIDENCIÁRIO. AÇÃO DE CONHECIMENTO. AUXÍLIO-DOENÇA ACIDENTÁRIO. AUXÍLIO-ACIDENTE. ARTS. 59, 62 E 86 DA LEI N. 8.213/91. REQUISITOS CONSTATADOS. SENTENÇA MANTIDA. RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO. 1. Apelação interposta contra a sentença que, em ação de conhecimento, julgou parcialmente procedentes os pedidos apresentados na petição inicial para condenar o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), ora apelante, a conceder auxílio-doença acidentário ao autor, ora apelado, até reabilitação profissional e, após sua conclusão definitiva ou encerramento, converter o benefício em auxílio-acidente, sem prejuízo da concessão administrativa de aposentadoria por invalidez. 2. O STJ, ao julgar o Tema de Repercussão Geral n. 416 (REsp 1109591/SC), fixou a seguinte tese: ?Exige-se, para concessão do auxílio-acidente, a existência de lesão, decorrente de acidente do trabalho, que implique redução da capacidade para o labor habitualmente exercido. O nível do dano e, em consequência, o grau do maior esforço, não interferem na concessão do benefício, o qual será devido ainda que mínima a lesão?. Assim, é possível conceder auxílio-acidente independentemente do grau da incapacidade, ainda que mínima a redução da capacidade laborativa. 3. Demonstrado, por meio de perícia médica, que o quadro psiquiátrico diagnosticado (Transtorno de Estresse Pós-Traumático – CID 10 F43.0 – e Transtorno de Ansiedade – CID 10 F41) tem relação de causalidade com a atividade laboral exercida pelo apelado, que apresenta incapacidade laboral permanente, parcial e multiprofissional, conclui-se que a sentença está adequada ao condenar o INSS a implementar o auxílio-doença acidentário até reabilitação profissional e, após sua conclusão definitiva ou encerramento, conceder o auxílio-acidente, já que satisfeitos os pressupostos previstos nos arts. 59, 62 e 86 da Lei n. 8.213/91. 4. Recurso conhecido e desprovido. (TJ-DF 0711302-02.2022.8.07.0015 1758020, Relator.: SANDRA REVES, Data de Julgamento: 13/09/2023, 7ª Turma Cível, Data de Publicação: 04/10/2023, grifou-se)

Em suma, uma interpretação da tese da TNU que restrinja o “dano” à lesão corporal visível e ignore a “perturbação funcional” seria um retrocesso, contrariando não apenas o texto da própria tese, mas toda a evolução do conceito de saúde. A disjuntiva “ou” é um portal para a justiça em casos de lesões invisíveis, mas nem por isso menos reais ou incapacitantes.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O percurso deste artigo partiu da análise da tese firmada no Tema 269 da Turma Nacional de Uniformização, que buscou, em um esforço louvável de uniformização, conceituar o “acidente de qualquer natureza” para fins de concessão do auxílio-acidente. Conforme demonstrado, os termos eleitos, “evento súbito” e “origem traumática”, possuem, isoladamente, notável precisão técnica, encontrando sólido respaldo na literatura médica e médico-legal. O evento súbito remete à agudeza temporal do infortúnio, enquanto a origem traumática aponta para sua causalidade exógena.


Contudo, a principal contribuição deste estudo reside na identificação de uma sutil, porém perigosa, armadilha hermenêutica que emerge da aplicação conjunta e cumulativa desses dois critérios. A análise aprofundada revelou que, na vasta maioria dos cenários médicos, a própria noção de “trauma”, a ação de uma energia externa sobre o corpo, já carrega em si o atributo da subitaneidade. Um trauma é, por sua natureza, um evento agudo. Essa sobreposição conceitual gera uma redundância técnica no texto da tese, cujo efeito paradoxal é a potencial criação de um duplo filtro probatório, onde um único já bastaria.
Essa redundância não é um mero preciosismo acadêmico; ela tem o potencial de comprometer gravemente a segurança jurídica e a efetividade da proteção social. Um julgador ou perito menos avisado pode, diante de um caso concreto, buscar artificialmente distinguir os dois elementos, negando um benefício por entender que o evento, embora traumático, não foi “súbito o suficiente”, ou, embora súbito, não foi “traumático o suficiente”. Tal interpretação cria um obstáculo probatório que não encontra respaldo na finalidade da norma e milita contra o princípio basilar do Direito Previdenciário: a proteção ao hipossuficiente (in dubio pro misero).
Demonstrou-se, ademais, que uma interpretação teleológica e sistemática da tese é imperativa. O conceito de “origem traumática” deve ser compreendido de forma ampla, abarcando não só o golpe externo, mas a energia biomecânica, a crucial doutrina da concausa, chancelada pela jurisprudência, e a moderna concepção de dano como “perturbação funcional”, que legitima o reconhecimento do trauma psíquico e das lesões invisíveis. Da mesma forma, o “evento súbito” deve ser aferido pela manifestação da incapacidade, reconhecendo que a “fotografia” do momento agudo pode ser o desfecho de um longo “filme” fisiopatológico crônico.


Diante do exposto, e com o fito de mitigar os riscos interpretativos identificados, propõem-se os seguintes caminhos:

a) Aprofundamento Doutrinário e Acadêmico: Incumbe à academia jurídico-previdenciária e médico-legal a tarefa de dissecar essa relação conceitual, publicando estudos que esclareçam a redundância técnica e proponham uma interpretação unificada, na qual a comprovação do trauma, na maioria das vezes, já satisfaz o critério da subitaneidade;
b) Construção de Diretrizes Interpretativas: O Conselho da Justiça Federal e as Corregedorias dos Tribunais podem fomentar a criação de enunciados ou diretrizes que orientem a aplicação da tese, pacificando a interpretação de que a análise não deve ser cindida, mas sim focada na ocorrência de um infortúnio externo que tenha efetivamente causado ou agravado uma condição, resultando em sequela incapacitante;
c) Formação Continuada e Interdisciplinar: É crucial investir na capacitação de magistrados, membros do Ministério Público, advogados e, sobretudo, peritos judiciais. A promoção de seminários e cursos que unam as perspectivas do Direito e da Medicina é fundamental para que o diálogo técnico seja preciso e alinhado aos objetivos da Seguridade Social e
d) Criação de um Observatório Jurisprudencial: A monitorização sistemática das decisões dos Juizados Especiais Federais e das Turmas Recursais é essencial para identificar, em tempo real, focos de divergência interpretativa na aplicação do Tema 269, permitindo a atuação corretiva da Turma Nacional de Uniformização.



Em última análise, a busca pela segurança jurídica, embora essencial, não pode se converter em um formalismo que negue a proteção social. Harmonizar o rigor conceitual do Direito com a complexa e multifatorial realidade do corpo humano não é apenas um desafio técnico, mas o caminho para que a tese do Tema 269 cumpra seu verdadeiro propósito: o de garantir justiça e amparo ao segurado no momento de sua maior vulnerabilidade.

NOTAS DE FIM

1. MARTINEZ, Wladimir Novaes. Comentários à Lei Básica da Previdência Social: Tomo II: Plano de Benefícios. 10. ed. São Paulo: LTr, 2017. p. 451.


2. FRANÇA, Genival Veloso de. Medicina Legal. 12. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2021. p. 135


3. DICIONÁRIO PRIBERAM DA LÍNGUA PORTUGUESA. Verbete “súbito”. [s.l.]: Priberam Informática, S.A., 2024. Disponível em: https://dicionario.priberam.org/s%C3%BAbito .Acesso em: 15/07/2025.


4. MEDLINEPLUS. Medical Encyclopedia: Acute. Bethesda (MD): National Library of Medicine (US), 2024. Disponível em: https://medlineplus.gov/ency/article/002215.htm . Acesso em: 15/07/2025.


5. TADI, Prasanna; LUI, Franklin. Acute Stroke (Cerebrovascular Accident). In: StatPearls . Treasure Island (FL): StatPearls Publishing, 2024 Jan. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/books/NBK535369/ Acesso em: 15/07/2025.


6. AZAR, Frederick M.; MURPHY, G. Andrew. Distúrbios do Tendão de Aquiles. In: AZAR, Frederick M.; BEATY, James H.; CANALE, S. Terry (Ed.). Campbell Ortopedia Operatória. 14. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2022. v. 4, p. 4698. Nesta obra canônica, os autores explicam que “a ruptura do tendão de Aquiles quase sempre ocorre através de uma área de tendinose preexistente” e que a lesão aguda é o resultado de um estresse de tração em um tendão que já está enfraquecido por alterações degenerativas.


7. IBRAHIM, Fábio Zambitte. Curso de Direito Previdenciário. 25. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2020. p. 658. Ao comentar o auxílio-acidente, o autor esclarece: “Não é a lesão que enseja o benefício, mas a sequela dela decorrente, ou seja, o resultado da lesão após a consolidação, capaz de reduzir a capacidade para o trabalho.”


8. FRANÇA, Genival Veloso de. Medicina Legal. 12. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2021. p. 135.


9. MANSFIELD, C. J. Trauma Overview. In: StatPearls [Internet]. Treasure Island (FL): StatPearls Publishing, 2023 Jan.


10. ERBER, M. R.; GERBER, M. R. Trauma-Informed Healthcare Approaches: A Guide for Primary Care. Cham: Springer, 2019. p. 5.


11. BODEN, Barry P.; DEAN, Griffin S.; FEAGIN, John A.; GARRETT, William E. Mechanisms of Anterior Cruciate Ligament Injury. Orthopedics, v. 23, n. 6, p. 573-578, 2000. Este estudo clássico é uma das referências mais citadas para estabelecer a alta prevalência de lesões de LCA sem contato, fundamentando o argumento de que o trauma mecânico independe de um agente de colisão externo.


12. FRANÇA, Genival Veloso de. Medicina Legal. 12. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2021. p. 136. Ao detalhar os agentes mecânicos, o autor não os restringe a objetos, mas sim à ação da energia que eles transferem, o que ampara a tese de que a energia gerada pelo próprio corpo pode ser o agente traumático.


13. MARTINS, Sérgio Pinto. Direito da Seguridade Social. 39. ed. São Paulo: Saraiva, 2020. p. 482.


14. AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION. Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais: DSM-5-TR. 5. ed. rev. Porto Alegre: Artmed, 2023.


15. GOLDMAN, Lee; SCHAFER, Andrew I. Goldman-Cecil Medicine. 26. ed. Philadelphia: Elsevier, 2020. Em seus capítulos sobre Neurologia, a obra descreve detalhadamente as sequelas funcionais do TCE leve, como a síndrome pós-concussional, que podem persistir e causar incapacidade significativa mesmo com exames de neuroimagem normais.

REFERÊNCIAS


AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION. Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais: DSM-5-TR. 5. ed. rev. Porto Alegre: Artmed, 2023.


AZAR, Frederick M.; MURPHY, G. Andrew. Distúrbios do Tendão de Aquiles. In: AZAR, Frederick M.; BEATY, James H.; CANALE, S. Terry (Ed.). Campbell Ortopedia Operatória. 14. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2022. v. 4, p. 4698-4720.


BODEN, Barry P. et al. Mechanisms of Anterior Cruciate Ligament Injury. Orthopedics, Moorestown, v. 23, n. 6, p. 573-578, jun. 2000.


BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Interno no Agravo em Recurso Especial nº 965.138/SP. Relator: Ministro Napoleão Nunes Maia Filho. Primeira Turma. Brasília, DF, 22 de outubro de 2019. Diário de Justiça Eletrônico, Brasília, DF, 8 nov. 2019.


BRASIL. Tribunal Regional Federal da 3ª Região. Apelação Cível nº 5141720-83.2021.4.03.9999. Relatora: Desembargadora Federal Therezinha Astolphi Cazerta. Oitava Turma. [S. l.], 28 de junho de 2022. Diário de Justiça Eletrônico, [S. l.], 30 jun. 2022.


BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Agravo de Instrumento em Recurso de Revista nº 83300-08.2008.5.05.0132. Relator: Ministro Douglas Alencar Rodrigues. Sétima Turma. Brasília, DF, 24 de maio de 2017. Diário Eletrônico da Justiça do Trabalho, Brasília, DF, 26 maio 2017.


DICIONÁRIO PRIBERAM DA LÍNGUA PORTUGUESA. Verbete “súbito”. [S. l.]: Priberam Informática, S.A., [20–]. Disponível em: https://dicionario.priberam.org/súbito. Acesso em: 18 maio 2024.


FRANÇA, Genival Veloso de. Medicina Legal. 12. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2021.


GERBER, M. R.; GERBER, M. R. Trauma-Informed Healthcare Approaches: A Guide for Primary Care. Cham: Springer, 2019.


GOLDMAN, Lee; SCHAFER, Andrew I. Goldman-Cecil Medicine. 26. ed. Philadelphia: Elsevier, 2020.


IBRAHIM, Fábio Zambitte. Curso de Direito Previdenciário. 25. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2020.


MANSFIELD, C. J. Trauma Overview. In: STATPEARLS. Treasure Island (FL): StatPearls Publishing, jan. 2023. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/books/NBK459324/. Acesso em: 18 maio 2024.


MARTINEZ, Wladimir Novaes. Comentários à Lei Básica da Previdência Social: Tomo II: Plano de Benefícios. 10. ed. São Paulo: LTr, 2017.


MARTINS, Sérgio Pinto. Direito da Seguridade Social. 39. ed. São Paulo: Saraiva, 2020.


MEDLINEPLUS. Medical Encyclopedia: Acute. Bethesda (MD): National Library of Medicine (US), [20–]. Disponível em: https://medlineplus.gov/ency/article/002215.htm. Acesso em: 18 maio 2024.


RIO DE JANEIRO (Estado). Tribunal de Justiça. Apelação / Remessa Necessária nº 0080928-18.2009.8.19.0001. Relatora: Desembargadora Denise Levy Tredler. Vigésima Primeira Câmara Cível. Rio de Janeiro, RJ, 15 de agosto de 2017. Diário de Justiça Eletrônico, Rio de Janeiro, RJ, 21 ago. 2017.


TADI, Prasanna; LUI, Franklin. Acute Stroke (Cerebrovascular Accident). In: STATPEARLS. Treasure Island (FL): StatPearls Publishing, jan. 2024. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/books/NBK535369/. Acesso em: 18 maio 2024.


DISTRITO FEDERAL. Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios. Apelação Cível nº 0711302-02.2022.8.07.0015. Relatora: Desembargadora Sandra Reves. Sétima Turma Cível. Brasília, DF, 13 de setembro de 2023. Diário de Justiça Eletrônico, Brasília, DF, 4 out. 2023.